Gestos mais importantes que Vitórias

Sexta, 11 Janeiro 2013
O título deste artigo diz claramente o que vai ser alvo da minha escrita nas próximas linhas. Quantas e quantas vezes já me questionei, durante a minha vida desportiva, se a única coisa que interessa no Desporto é Vencer e acabei por desistir de tentar responder… Num meio em que se desculpabilizam aqueles que têm comportamentos errados com a (muitas vezes ouvida) frase “Fez o que tinha a fazer para conseguir vencer”, ganhar a todo o custo é a palavra de ordem!

Para mim não… Já há algum tempo que, no desporto profissional, me interessam mais os gestos que as vitórias. Cada vez mais raros, os “gestos de cavalheirismo” quando ocorrem deixam-me emocionado e só em Dezembro, tive conhecimento de dois na Península Ibérica. Super!

Amílcar Duarte estava a pouco menos de 60 metros de completar a São Silvestre em segundo lugar no seu escalão (veteranos 4) quando a uns metros à sua frente, Paulo Félix, que seguia em primeiro, cai desamparado. E eis o que acontece:

Amilcar Duarte


Amílcar Duarte parou a sua corrida e ajudou o seu rival, mostrando um exemplo raro de desportivismo. Nos dias seguintes, uma foto do sucedido surgiu no facebook com uma pergunta do tipo “se fosses tu, farias o mesmo?”. É uma pergunta forte e, claro que cada um gostaria de dizer “sim, faria” mas a verdade é que no “terreno”, os valores do desportivismo fogem inexplicavelmente. Foi uma reacção que o Amílcar teve em poucos segundos que duvido que dê para grandes pensamentos “Parar? Sim? Não? Sim? Não?”. Eu não conheço pessoalmente o Amílcar mas o comportamento do Amílcar, assim como qualquer comportamento humano, é justificado pela forma como ele actua geralmente na vida com base nos seus valores, na sua experiência de vida, na sua personalidade. E neste episódio, o Amílcar demonstrou um Desportivismo invulgar nos Veteranos, escalões em que (sempre ouvi dizer) os “atletas são os piores em termos de malandragem e competição desleal”. A meu ver, a cara do atleta auxiliado (imagem 5) revela a sua surpresa.

Iván Fernández Anaya, um par de semanas antes, também foi protagonista de um episódio notável e raro. O atleta espanhol seguia em 2º lugar no “Cross de Burlada” sem qualquer hipótese de vencer a prova quando o primeiro classificado, o queniano Abel Mutai (medalha de bronze olímpica nos 3000m obstáculos), se enganou após entrar num grande funil com um arco de balões, parando uns 50metros antes da verdadeira linha de meta.

Iván Anaya aproximou-se rapidamente do queniano que foi meu colega no Benfica em 2006, e poderia ter-se aproveitado da situação e ganhar a um medalhista olímpico mas não. Desacelerou, bateu nas costas do atleta queniano, apontou-lhe para a verdadeira linha de meta e quase empurrando-o, levou-o até lá, mantendo as posições que o curso da corrida naturalmente tinha proporcionado. “Ele era o justo vencedor. Tinha-me ganho uma distância que eu não podia recuperar se ele não se tivesse enganado. Desde que vi que ele parou antes da meta, soube que não o iria passar” disse Iván.

Um gesto semelhante, a mesma pergunta: “Se fosses tu, farias o mesmo?” Quem seguramente não fazia o mesmo era o treinador do Iván, antiga estrela do atletismo espanhol, Martin Fiz. Aos jornalistas, Fiz disse que “foi um grande gesto de honestidade. Um tipo de gesto daqueles que nunca foram feitos. Um gesto que eu próprio não teria feito. Eu aproveitava-me da situação para ganhar, seguramente.”

E se Iván tivesse aproveitado e ganho, ainda por cima a correr na sua região, ninguém o recriminaria. Mas as seguintes palavras de Iván Anaya dizem tudo: “Não merecia ganhar! Fiz o que tinha de fazer”.

De facto, vitórias vindas por “obra e graça do espírito santo” e não por mérito próprio são vazias de significado, especialmente em desportos onde a sorte, os postes, as traves ou até árbitros corruptos são substituídos pelo suor e capacidade de sofrimento individual.

Até podia ter aproveitado para ganhar a prova, mas Iván e toda a gente presente sabia que ele não tinha sido o melhor naquele dia. E se não fosse o seu nobre gesto, talvez nunca teria ouvido falar deste atleta assim como milhares de pessoas que, pelo mundo todo, tiveram conhecimento do ocorrido. O próprio atleta espanhol confessa que ter feito o que fez deu-lhe mais nome do que se tivesse ganho a prova. A sua atitude teve uma repercursão brutal e foi felicidado de todos os cantos do mundo mas é incrivel que o seu treinador a tenha reprovado.

Iván Anaya

Martin Fiz afirmou mesmo que “o gesto fê-lo ser melhor pessoa mas não melhor atleta. Não aproveitou uma oportunidade. Ganhar faz-te sempre mais atleta. Tem de se partir sempre para ganhar”.

Estas palavras que, a meu ver, nunca deviam ter sido pronunciadas por um treinador reflectem lindamente a perda de valores com que se vive hoje em dia na sociedade e no desporto. Estamos perante a história de que só interessam os resultados, sendo tudo permitido para alcançá-los. Isto acontece aqui no Desporto mas também acontece em toda a Sociedade, entre Empresas (e dentro das mesmas). É o mundo (bastante animal) de competição nos dias que correm, muito impulsionada pela máxima “Just Do It” da Nike, lançada em 1988.

E será que faz sentido tentar separar o “homem” do “atleta”, quando esses supostos “dois” seres são o mesmo. Ser melhor pessoa sem ser melhor atleta? Por favor… Li algures que um Homem “não é um atleta, um advogado, um arquitecto, um professor ou um basquetebolista. Um Homem é uma pessoa e a actividade a que cada um se dedica é apenas um veículo para transmitir e expressar as suas quallidades, sentimentos e emoções”.

Através de uma actividade profissional como o desporto, em que se consegue influenciar fácil e principalmente a juventude, deviamos ter atletas a “transmitir” certas mensagens para melhorar a sociedade.

Por isso, não é como o seu treinador diz, Iván não perdeu uma oportunidade de ganhar, aproveitou-a sim para, de uma maneira extraordinária, transmitir à sociedade um valor que se perdeu: a honestidade.

E mais, ou se tem valores ou não se tem, dentro ou fora de uma pista de atletismo, antes, durante e depois de uma competição. Ou se têm ou não se têm, não os podemos deixar no balneários e voltar a tê-los depois do duche.

Após 20 anos a participar em competições desportivas, desde corridas de estrada, cross e pista a provas de natação, passando por triatlo, ciclismo, ténis e futebol, sei responder à pergunta que me foi acompanhando.

Vencer não é única coisa que interessa no Desporto nem em qualquer outra actividade profissional, nem tão pouco é a mais importante. O que importa é o caminho de cada um e os valores que guiam esse caminho e hoje tenho a certeza do que sempre desconfiei: Há derrotas que são grandes vitórias.
Obrigado Amílcar! Gracias Iván!

E só mais uma coisa… Os gestos, assim como as vitórias, também ficam para a história.

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Comentarios (2)add feed
parabéns : Andre Cipriano
Muitos parabéns!
Fui teu colega no Clube Atlético de São Brás e lembro.me de teres tido um gesto de fair-play quando eras jovem e em que mostraste bem como és. Quando eramos iniciados, na primeira prova do Atleta Completo regional, em Mafra, o Marcos Caldeira dos Salesianos seguia isolado nos 100m barreiras e na ultima barreira espetou-se e caiu. Tu que ias em 2º passas-te a ultima barreira, desaceleras-te e ficas-te a olhar para ver se ele se levantava para n lhe ganhares tempo e pontos injustamente.
Quando o nosso treinador veio ter conosco, deu-te na "cabeça" e perguntou se "fosse o contrário, achas que ele fazia o mesmo?"
E no fim, ainda ouvis-te mais porque ele fez as contas aos pontos que podias ter ganho nos 100m bar e podias ter ganho o atleta completo e a representar Lisboa no Atleta completo nacional.
Mas lembro-me que disse-te algo do género "Quero ganhar quando mereço e não quando os outros falham". Será que te lembras disso? Será que alguém se lembra disso?

Gande abraço e continua
Janeiro 12, 2013
Foi o que disses-te : Andre Cipriano
Agora fiz um esforço para me lembrar do que tu disses-te e foi "Ganhar porque ele cai não é ganhar como deve ser. Quero ganhar como deve ser"
Janeiro 12, 2013
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