O poder do atletismo

Sábado, 25 Dezembro 2010
Poucas vezes me custou tanto começar um artigo… E tudo por causa do enorme desconforto provocado pela mega Operação Galgo, aqui bem ao lado, na vizinha Espanha, país que recebe imensos estágios de atletas que encontram lá “melhores condições” do que nos seus próprios países. O atletismo é um desporto cheio de heróis de carne e osso, de marcas a superar, de performances bastante épicas, de vitórias memoráveis, de fracassos totais e de momentos que duram uma eternidade na memória… Nem sabem o quanto eu gostaria de falar do nosso desporto com alegria mas sinto-me revoltado, triste e enganado. Eu era uma criança que se fartava de correr pelas ruas da Amadora cheio de admiração pelos grandes campeões e que (contam os meus pais) dizia querer ser “preto” já que na TV só via pessoas de tez negra a vencerem provas de atletismo. Carl Lewis, Mike Powell, Ben Johnson, Flo-Jo, Kevin Young, Frank Fredericks, Donovan Bailey, Leroy Burrel… Será que venciam tudo limpos? Podemos ser “naives” e limitarmo-nos a olhar para aquelas pernas maquinadas galgando metros atrás de metros sem se cansarem e pensarmos que é fruto de muito “trabalho, trabalho e trabalho” como dizia há poucos meses a Marta Domínguez, a “novia de España”. Agora sabemos que, no caso dela, “não”… Até podia ser e é por isso que também considero engraçado treinadores portugueses virem só agora a público afirmar que sabiam que algo de errado se passava no país vizinho e que já estavam à espera de um escândalo desta dimensão no desporto espanhol.

Mais uma vez, o Doping na génese do escândalo… Mas não é nenhuma novidade pois já tinha escrito sobre o tema em artigos anteriores. Em Julho de 2009 dei conta do que James Carter (antigo campeão americano de 400m barreiras) disse no momento em que abandonou a nossa modalidade: “Não consigo correr mais contra as drogas (…) quem pensar que o atletismo está mais limpo desde o escândalo Balco é porque realmente não está com atenção ou porque não se interessa”. Este ex-atleta é quase a minha fonte primária de informação no que toca ao doping no desporto já que sempre que aparecem novos casos, James Carter denuncia-os no seu facebook, com o seguinte comentário “Anyone surprised?”. A última “surpresa” dada por Carter foi a da sprinter mais rápida dos últimos 10 anos, Laverne Jones-Ferrete, punida com 6 meses de suspensão.

Este escândalo ter explodido em Espanha não me diz nada em especial já que podia ter sido em qualquer país desde que as autoridades policiais tivessem coragem para levar a cabo investigações “à séria” e não se deixem influenciar por nacionalismos. E escrevo isto porque o desporto tem capacidade de influenciar a identidade nacional de um país (veja-se o exemplo Jamaica) pelo que pode existir o pensamento de “Bem, deixem os atletas fazer o que quiserem para que levantem a nossa bandeira bem alto nas grandes competições internacionais. É só isso que interessa. Estão à vontade para tomar o que quiserem, têm é de trazer medalhas para dar alegria e orgulho à nação”. Com estes pensamentos, até as federações nacionais se sentem obrigadas a ajudar os atletas nos seus regimes de doping. Na Real Federação Espanhola de Atletismo, Marta Domínguez era “apenas” vice-presidente… Dito isto, será preciso acrescentar mais alguma coisa?

Agora tenho a certeza de que o “trabalho, trabalho e trabalho” de Marta Domínguez era facilitado por substâncias ilegais. Realmente, tendo estas ajudas de laboratório, o atleta nem deve sentir as dores no corpo, pelo que se compreende que consiga “trabalhar, trabalhar e trabalhar”. Tenho procurado por artigos acerca do tema e muitos são os espanhóis que estão desiludidos com a mulher da fita na cabeça. Uns tiram as fotos da Marta das paredes dos seus quartos. Outros sentem-se desanimados por sentirem que os sonhos que sonharem com Marta não passaram de mentiras. Outros querem acordar e pensar que as notícias sobre a sua ídolo não passaram de um pesadelo. Mas quase todos não têm contemplações ao dizer que se sentem bastante traídos por alguém que, quando questionada acerca do doping, respondia “Tolerância zero”.

“Tolerância zero” só se for para os outros adversários! Mas na situação da Marta Domínguez, há muitos e muitas… Defendem os controlos dentro e fora do período competitivo, dão a cara na luta contra o doping, fazem doações monetárias a agências de anti dopagem para melhorarem os processos de despistagem mas acabam por ter os seus nomes envolvidos em doping… Por todo o mundo, casos atrás de casos vão surgindo.

No meio de tanta porcaria a acontecer no Atletismo, ainda há momentos que nos ficam na retina e que me fazem desfrutar imenso de belas sensações. Poucos dias depois de a Operação Galgo vir a público, recebemos os Campeonatos Europeus de Corta-Mato em Albufeira e as selecções nacionais estiverem em muito bom plano. Rui Pinto, Ricardo Mateus, Tiago Costa, Jéssica Augusto, Dulce Félix, Marisa Barros e El Kalai foram os que mais se destacaram individualmente e a verdade é que foi um dia verdadeiramente espectacular para o Atletismo Português: 2 medalhas de ouro (Jéssica e equipa sénior feminina), 3 medalhas de prata (Rui Pinto, equipas júnior e sénior masculinas) e 2 medalhas de bronze (Dulce Félix e El Kalai). Não me lembro de um dia com tantas medalhas para Portugal como aquele que até teve direito a 5 horas de transmissão televisiva… Espectáculo!

Não faço ideia de quais foram os ratings nem os shares televisivos mas terem dado a possibilidade aos portugueses de assistirem a momentos espectaculares é de louvar. Seria bom que o povo português desse reconhecimento aos desportistas que não “jogam à bola”. Seria bom que maior parte da população portuguesa conhecesse Jéssica Augusto ou El Kalai. Seria tão bom que a população parasse em frente ao televisor quando os nossos atletas estivessem a representar as cores nacionais em competições internacionais quer tenham ou não hipóteses de vencer. Seria tão bom que o atletismo tivesse esse poder no nosso país. Porque conta quem esteve na República Dominicana durante os Mundiais de Berlim 2009, que o país inteiro se paralisava na altura das provas de Félix Sanchez. Ver o seu herói nacional em acção é uma obrigação num país que caminha entre o segundo e o terceiro mundo… E naquele dia, a 26 de Agosto de 2009, “Super” Sanchez ficou em último lugar na final de 400m barreiras após um toque forte na primeira barreira mas os dominicanos perdoaram-lhe e continuam a tê-lo como herói nacional. Quanto a mim, naquele dia decidi que aquele seria para sempre o meu super herói favorito.

Com uma folha de serviço perfeita, Félix Sanchez e a sua ilha do Caribe mostram-nos o que deve ser o Atletismo. O poder de Sanchez é o poder que a Jéssica Augusto devia ter. O poder do atletismo na República Dominicana é o poder que o atletismo devia ter em todos os lugares do mundo… sem doping de preferência.

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