A crise, a fuga da realidade e os “individuais”

Sábado, 23 Outubro 2010
Nos últimos meses, os sinais de completa ruptura económica em Portugal são cada vez mais preocupantes. O forte endividamento externo, a dívida das empresas e dos particulares, o crescente desemprego e a falta de investimento são apenas alguns dos aspectos duma crise que, segundo muitos, sempre existiu no nosso pequeno país. Mesmo assim, o mercado desportivo no global (para o qual muito contribui o futebol) foi crescendo a bom ritmo, parecendo ser imune aos sinais evidentes da crise.

A explicação dada por sociólogos prende-se com o facto de as pessoas procurarem mais actividades quando a vida endurece e não lhes proporciona tantas razões para sorrir. De facto, pelas suas características únicas, o Desporto é ideal para as pessoas fugirem da realidade, fazendo-as esquecer das amarguras da vida. Aqueles 9,58 segundos de Usain Bolt a percorrer 100m, aquelas belas acrobacias dos ginastas, aquela bola que entra na baliza, aqueles 17,74m de Nelson Évora são momentos de euforia, de felicidade, de paixão que as pessoas imortalizam nos seus corações.

Penso até que todas as pessoas deviam estar gratas eternamente àqueles que, seguindo meramente os seus objectivos pessoais, proporcionaram momentos de enorme felicidade a todos. Não me esqueço do que Nelson Évora me proporcionou naquele dia da final de Osaka (mais do que em Pequim): pulei, gritei, rezei, quase chorei de emoção, senti-me vivo, eufórico… Feliz!

Já Maya Angelou, uma das maiores poetas afro-americanas da história, dizia que “as pessoas esquecem-se do que lhes disseram e do que lhes fizeram, mas nunca se esquecem de como as fizeram sentir” e aquilo que o nosso campeão proporcionou não tem preço… Teve de atingir o topo mundial para dizerem: “He’s no joke, he’s for real” e aí começou a colher o que tinha por direito próprio. Patrocínios, contratos publicitários, agenciamento, entrevistas, desfiles…

Nelson Évora é único em Portugal: é Campeão Olímpico. Goza de um estatuto que mais ninguém goza. Ainda há poucos meses, adicionou a Redbul na sua família de “sponsors”, numa fase que já era impossível negar a existência da crise no Desporto nacional. Em 2010, a indústria desportiva em Portugal tem dado sinais evidentes de abrandamento e o Atletismo está a ser violentamente afectado. Todos os atletas, provavelmente até mesmo Nelson Évora, têm agora a vida mais dificultada…

Cada vez será mais difícil viver do Atletismo. O Professor Moniz Pereira abandonou (legitima e compreensivelmente pela sua idade) o leme do Atletismo leonino depois de um trabalho digno de glória olímpica, e parece que as várias profecias se cumpriram. Sempre se ouviu dizer que com a saída do lendário Prof. Moniz Pereira, o Atletismo português iria entrar em maus lençóis. Este pensamento tem toda a força se olharmos para a selecção nacional, onde maior parte dos atletas são oriundos do clube de Alvalade.

Não sei se podemos culpar a crise ou se devemos culpar a saída do Prof. Moniz Pereira mas a verdade é que o orçamento leonino para o Atletismo teve um corte de 200mil euros em relação à época anterior. Muitos dos seus atletas tiveram de aceitar a redução dos seus subsídios porque não há nenhum outro “clube de pista” a pagar tão bem como o Sporting. Arnaldo Abrantes e António Vital e Silva foram os que não aceitaram e preferiram inscrever- se como individuais… Foi uma decisão corajosa porque, caso ficassem, sempre recebiam mais algum dinheiro. É óbvio que estes atletas ficaram sem margem de manobra: o F.C. Porto desinvestiu claramente na secção de Atletismo, o Maratona CP e a Conforlimpa (os outros clubes, juntamente com o Sporting, que permitem os seus atletas viveram só do Atletismo) não apostam na pista e, se a integração no Projecto Olímpico do Benfica era uma alternativa, o pacto de não-agressão celebrado entre Sporting e Benfica para as modalidades amadoras tornou-a impossível.

Se Arnaldo Abrantes e António Vital e Silva são valores certos do nosso Atletismo e foram “surpreendidos” pela crise, facilmente se percebe a dificuldade para as jovens promessas. Será cada vez mais difícil fixar os jovens com potencial porque agora, mais do que nunca, não há dinheiro nos clubes de atletismo para subsidiar alguém que mostra potencial, mas que ainda não ganhou nada. Por vezes, “uma mão” é fundamental para fixar um jovem promessa, para encaminhá-la ao sucesso, etc. Claro que a ajuda aos jovens que ainda não ganharam nada (mas tem potencial para ganhar) é um investimento com risco mas quando não há dinheiro, não há investimentos. É a crise!

Os tempos de “carolice” de alguns empresários (principalmente de cafés ou mercearias) na ajuda às equipas locais estão-se a acabar. Tais factores não auspiciam um bom futuro para a nossa modalidade que não tem conseguido ganhar notoriedade junto da sociedade, o que obviamente não atrai patrocinadores.

Michael Jordan, a maior lenda do basquetebol, disse que, actualmente, na NBA tudo está errado. Contesta Jordan porque, no seu tempo, os basquetebolistas tiveram de lutar, de “suar” a sério para ganharem dinheiro, para merecerem patrocínios (tal e qual o exemplo de Nelson Évora) e agora, os basquetebolistas assinam logo contratos, não pelo que fizeram, mas pelo que se espera que façam… Jordan é contra este fenómeno porque pode “amolecer os atletas”, tirar-lhes ambição de singrar porque já recebem milhares ao saírem da faculdade. Não se sentirão já uns reis com tanto dinheiro nos bolsos antes de mostrarem o que valem?

É bem provável mas… O Arnaldo Abrantes e o António Vital e Silva já mostraram que “are no jokes, they’re for real”. São o futuro do Atletismo Português e não há clube que lhes pague o que merecem?

Já sabemos que esta época não e vão competir como “individuais”…

Arnaldo Abrantes



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