Há com cada uma - 3º fenómeno

Quarta, 27 Janeiro 2010
Depois de ter abordado dois acontecimentos pontuais que podem ser corrigidos facilmente se houver vontade, está na hora de escrever sobre os atletas de meio-fundo e fundo e o facto de correrem quase todos os fins-de-semana. O que motiva este comportamento e quais as suas consequências? Neste artigo tento responder a estas questões mas trata-se meramente de um artigo de opinião que tem por base algumas estatísticas, sem quaisquer bases científicas ou estudos psico-sociais.

O exemplo Dibaba – Quando Tirunesh Dibaba correu 15km em 46m28s para um novo Record Mundial a Novembro de 2009, Len Johnson da Runner’s Tribe, ficou perplexo com um facto à parte do tempo super rápido da atleta. Com 46:28 Dibaba ficaria no 10º lugar Masculino no Campeonato Nacional de Estrada de 2010, entre Hermano Ferreira (46:25) e Tiago Costa (46:40)! E se tivermos em consideração os parciais de 5km em crescente (15:58 - 15:25 - 15:05), parece que a atleta esteve contida, podendo fazer melhor.

Além disso, o que fascina mais Len Johnson e que deve fascinar a todos é o facto que ter sido a terceira prova de estrada da carreira de Dibaba e a primeira após 4 anos. Antes deste record mundial, a atleta tinha corrida apenas em Carlsbad (5km) por duas vezes, em 2002 e em 2005. Este exemplo é maravilhoso. Desde Abril de 2005 a 15 de Novembro de 2009, Dibaba não correu uma única vez em estrada tendo sido Campeã Olímpica de 5000m e 10000m em Pequim 2008, Campeã Mundial de 5000m e 10000m em Helsínquia 2005, Campeã Mundial de 10000 em Osaka 2007 e Campeã Mundial de Corta-Mato em 2005 (curto e longo) e em 2006 e 2008 no longo.

Isto lançou algum debate sobre se as corridas de estrada e a Pista são compatíveis ou não… Já foram alguns os exemplos de atletas que foram excelentes nas três superfícies de provas de fundo. Len Johson conta o caso de Alberto Salazar que logo após ser 2º no Mundial de Cross de 1982, ganhou a Maratona de Boston abaixo de 2h09 e poucos meses depois perdeu por pouco com Henry Rono nos 10000m em pista (com 27:25,61). Tudo num espaço de 6 meses. Mas casos desses são raros…

“Prateleiras e armários” – As minhas origens como atleta estão espalhadas pelas estradas da Amadora. Foi nas provas de estrada que comecei e foi aí que coleccionei cerca de uma centena de taças desde Benjamin a Iniciado de 1º. No entanto tive a sorte de ter trabalhado com treinadores que proporcionavam um treino decente para jovens. Foram eles o Rui Gonçalves inicialmente e depois o João Azevedo (com quem vivi as minhas maiores alegrias desportivas). A mim não fazia confusão nenhuma mas sei que a outros incomodava porque ou queriam correr muitos km, ou queriam só fazer sprints. Em Iniciado de 2º comecei a ter bons resultados na Pista em várias disciplinas e nessa altura, numa concentração inter-associações de jovens, houve uma frase que me marcou imenso. Recordo-me perfeitamente de ter dito, armado em “sabe-tudo”: «Na Estrada é que há dinheiro a sério…» e um treinador que respeito imenso e que tem formado excelentes valores, respondeu: «Os atletas de fundo ganham uma prateleira num fim-de-semana, noutro ganham um armário mas podem não ganhar nada, não é seguro», concluindo com algo do tipo: O dinheiro a sério ganha-se na pista… Bem, eu comecei a ver os prémios das provas de estrada e lá estava: 1º - 100€, 2º - 75€, etc… Tenho a certeza que não deixei as provas de estrada devido àquela frase mas a verdade é que acabei por virar-me para a pista. Mas a ligação com as provas de meio-fundo e fundo nunca morreu e estou sempre a acompanhá-las em qualquer superfície. Se não fosse dessa forma, não poderia escrever este artigo.

Provas de estrada e recuperação – A proliferação de provas de estrada em Portugal, a partir dos últimos anos da década de 80 do século passado, levou o Professor Bernardo Manuel a escrever para a revista Atletismo, a Dezembro de 1989, um artigo chamado “A recuperação entre provas”, no qual alerta os corredores para as indesejadas consequências de correr nas provas todas que tenham prémios monetários. Para além dos princípios fundamentais de treino “continuidade, progressão e alternância”, «um dos aspectos também revelantes que os corredores devem ter muito em conta prende-se com os excessos de provas que põe em causa não só a saúde, mas também a sua própria evolução” menciona o treinador que orientou Rui Silva até a Campeão Mundial de Pista-Coberta de 2001 em Lisboa e ao 3º lugar nos Jogos Olímpicos de 2004 em Atenas. No mesmo artigo, o prof. Bernardo Manuel fornecia-nos um quadro referencial com distâncias em km e os dias de intervalo que aconselhava de uma prova para outra. Então vinha:

Distância | Dias de recuperação
10km -> 10-20
15km -> 15-30
Meia Maratona -> 21-42
Maratona -> 42-84

Sobrevivência e marketing – Partindo do princípio que todos os treinadores com formação nas variadas associações de atletismo sabem os princípios básicos de treino e esta questão da recuperação entre esforços intensos, somos levados a pensar que os atletas “vão a todas” por auto-recreação, por vontade própria. É essa a ideia com que fico quando vejo um dos melhores treinadores de meio-fundo/fundo que conheço a ficar extremamente desiludido quando os seus atletas decidem participar nas provas sem o seu consentimento. Eu sei que, por desejo desse meu amigo treinador, os seus atletas participariam muito raramente em provas de estrada porque é na Pista que se vê quem são os melhores. No fundo, são as marcas que ficam para a história e sem dúvida que essas marcas têm maior expressão na Pista. Claro que não se pode esquecer da Meia-Maratona e da Maratona mas, também para essas provas, não se pode andar por aí a competir à louca, se se deseja evolução. Certamente que existem atletas excepções, que por serem tão raros, não nos fazem rejeitar as teorias de que o excesso de provas é prejudicial para a saúde e consequente evolução.

Era bom que em Portugal os atletas pudessem seguir exemplos como o da Tirunesh Dibaba mas simplesmente é muito complicado. Pode-se culpar os fundistas, dizer que são isto e aquilo mas a grande verdade é que não têm a verdadeira culpa. Têm de sobreviver, esse é o grande problema. E daí a aparecerem nas provas de estrada é um pequeno passo. A triste verdade é a de que, cá no nosso país, o atletismo não é capaz de atrair bons investimentos. Esses investimentos surgem sob forma de patrocínios e apoios pessoais mas no mundo do Desporto, visto como um negócio, só os desportos que podem trazer retorno aos patrocinadores é que interessam e, actualmente, o valor de marketing do Atletismo é muito fraco. Não tem notoriedade, não existe a cultura desportiva em Portugal necessária. Num país onde os fundistas são chamados de malucos por bêbados a sair das tascas e onde as fundistas são insultadas, especialmente por mulheres, durante os seus treinos, como pode ser possível que haja retorno financeiro de um patrocínio no Atletismo?

Já reparei que maior parte das ajudas feitas por PME’s a clubes de atletismo são feitas por carolice, sem qualquer lógica económica. Ajuda-se porque se é amigo ou porque se troca favores. Mas ainda bem que elas existem porque a sua ausência teria efeitos terríveis. De certeza que, não existindo essas pequenas ajudas, em vez de termos uma descida de qualidade e quantidade nos fundistas. Ora se, nestes moldes, tivemos 4 atletas masculinos a baixar dos 14min aos 5000m em 2008 e 2009 contra 25 atletas a conseguirem fazê-lo em 1990 (com o líder nacional Dionísio Castro a correr em 13:13.59 e mais quatro atletas a baixarem dos 13:30 nesse ano), talvez não tivéssemos nenhum atleta abaixo dos 14min sem os “pequenos subsídios” actualmente.

Vacas Gordas e vontade - O tempo dessas vacas gordas acabou na década de 90 e à medida que essas entraram em dieta, começou-se a falar da crise do meio-fundo e fundo… Será que faz sentido? Claro que sim. Usando o grande Marcin Urbas como exemplo, podemos ver a tamanha importância de um elevado investimento para se poder ser um dos melhores do mundo. Na altura da sua retirada do atletismo, Urbas referiu que era preciso investir cerca de 20 mil euros por época para conseguir ser um dos melhores do mundo (no seu caso, correr à volta dos 20 – 20,2). É irreal olhar para os nossos fundistas e pedir-lhes que façam mais do que já conseguem. A não ser que entrem num patamar onde ganhem dinheiro de diversos lados: clubes, patrocinadores pessoais, juntas de freguesia, etc… Esses conseguem e temos cá exemplos desses. Porque os restantes precisam de “ir a todas” e vão continuar a ir. Consequentemente, os tempos nas pistas não poderão evoluir porque também parece que a vontade de lá ir é pouca ou nula… É só olhar para o Campeonato Nacional de 10000m dos últimos anos… E, por exemplo, ter um pódio feminino de 2009 com atletas cotadas entre os 38:59.86 e 40:22.10. Onde estavam as atletas do Maratona, do Sporting de Braga ou da ADERCUS?

Ainda não há “Dibabas” e “Dibabos” em Portugal e acredito firmemente que não haverá num futuro próximo, infelizmente… Mas também acredito que isto não é novidade para ninguém.

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