Fácil de contar

Sexta, 21 Agosto 2009
Sendo esta a minha 10ª reflexão, e por ter uma ligação especial, decidi torná-la sobre mim, relatando alguns episódios do meu último ano. Saí do conforto do lar e vim para um país cuja cultura e mentalidade foi fortemente influenciada pelo bloco soviético. A minha decisão, porém, não foi muito difícil já que tenho, entre muitos interesses, um amor que a muitos portugueses ainda incomoda muito: o amor por aprender.

Patos bravos – Geralmente, os jovens portugueses quando se tornam adultos deparam-se com o triste facto de as pessoas que têm poder (especialmente os sem estudos) repudiam os eruditos, odiando mesmo tê-los por perto. E isto porque são verdadeiras ameaças aos seus poderes que, frequentemente ganhos à custa de “cunhas”, mentiras e ataques pessoais, podem fugir facilmente para outras mãos. Sabem que sem aquelas dimensões, só há uma maneira de subir na vida: com formação académica, a qual nos prepara não só a bagagem intelectual, como também nos oferece vivências sociais fundamentais para o sucesso profissional.

Os factos históricos e dados estatísticos provam que tal comportamento dos “patos bravos” está fortemente enraizado numa cultura que foi nascendo na Idade Média, onde o ensino estava reservado ao Clero e à mais Alta Nobreza, e prosseguido no século passado, com fortes influências de Mussolini, pelo Dr. António Salazar. Dizem os cronistas que Portugal, durante o Estado Novo, era conhecido por um país de Doutores e Engenheiros (os que governavam) e “uma nação valente” de massas ignorantes submissas (havia 70% de analfabetos). Deve ter sido desesperante para muitos, as coisas terem mudado depois da Revolução dos cravos sendo que, nos Census de 2001, a taxa de analfabetismo em Portugal já se situava nos 10%.

Amigos e sabedoria - Ora tive eu de esperar 20 anos e alguns meses para experienciar o amargo sentimento de estar a cometer um pecado por dar prioridade aos estudos… Quando pessoas do atletismo me direccionam observações com tom de gozo “Então já és doutor?” não é, certamente, por bons motivos… Mas quanto a isso posso eu bem porque sigo o meu caminho e o meu crescimento pessoal. O que não suporto é serem injustos para amigos meus que, mesmo dando prioridades aos estudos, ainda continuaram a fazer parte de selecções nacionais. Claro que poderiam ser muito melhores se só optassem por correr… Mas também poderiam partir uma perna logo no primeiro treino da época… Poderiam até ser recordistas do mundo… Mas poderiam fartar-se de só correr passado três meses… Há tantas possibilidades e cada um, dando liberdade à sua imaginação para traçar cenários possíveis, escolhe o que quer fazer. Sinceramente acredito que o mundo está cheio de oportunidades e alguns podem ser excelentes atletas e outros excelentes pescadores. Será que o mediatismo tira o mérito de cada um?

Como carta de Natal para os meus amigos mais chegados do Atletismo, escrevi sobre este assunto e recebi em troca palavras sábias do Carlos Santos, do Filipe Lara Ramos e do Arnaldo Abrantes. Não sei se eles ficarão chateados comigo se partilhar algumas dessas palavras mas significaram muito para mim. Do Carlos, aprendi que o sucesso não está só no vencer, está no lutar pelo que se quer. E podem crer que isso me animou… Do Lara Ramos, recebi o conforto de alguém “expert” no assunto por ter pisado terrenos semelhantes, alguns anos antes de mim, e cujo um dos sonhos foi interrompido por aqueles que dizem ter a sabedoria. Alegrou-me o facto de ele ter contornado obstáculos e visto um caminho alternativo para o seu objectivo. E, sem dúvida que a sua escola de Salto Com Vara no Algarve já está a dar frutos (2º lugar no nacional de juvenis masculinos). Com o Arnaldo confirmei que o atletismo é uma escola de vida e cujos altos e baixos só servem para nos fazer crescer como pessoas. Foi uma resposta que teve um significado especial por desde sempre ter visto o Arnaldo como o exemplo de excelente atleta e excelente estudante no difícil curso de Medicina. Só mostra que não são áreas incompatíveis… Contudo eu continuo a acreditar que ele nasceu um verdadeiro “fora de série”, até nos matraquilhos!

Prioridade, Realidade e Esperança – Nem sabem o desgosto que saboreei ao sentir que a minha progressão não estava a ser igual ao dos meus colegas de provas. Só me confirmou que a melhor prioridade seria a formação por, expectavelmente, me poder proporcionar um futuro mais brilhante.

Claro que, tal como toda a gente, gostaria de viver alguns dos sonhos que já tive, em que subia a pódios em estádios cheios de gente. Infelizmente, basta calçar os meus bicos pretos e dourados, edição Michael Johnson, e lançar-me à pista com ânimo de criança que logo dou de caras com a realidade, a triste realidade. Por exemplo, no sábado passado, fiz um teste para finalizar a época. Fiz 300m, 200m e 100m. Tempos: 38:0, 24:1 e 12,0. Certo que o meu treino esta época foi de quatro meses ainda com um tornozelo débil mas ainda não ter baixado dos 38s aos 300m fala por si. Essa marca deveria estar eu a fazer aos 300m com barreiras, por exemplo… Mas em tudo o que é mau, há coisas boas (e vice-versa) e aproveitei a razão que me fez estar parado tanto tempo, para aprender algo que já o meu pai me tinha incutido. É muito simples mas difícil de aceitar socialmente sob pena de nos chamarem egocêntricos: não devemos confiar nos “outros” de ânimo leve. Sejam eles simpáticos ou antipáticos, curandeiros ou enfermeiros.

Como “escola”, o atletismo também tratou-se de me incutir essa atitude mas como das palavras sábias de Dostoiévsky retirei a conclusão de que poderá haver um paraíso na terra (basta querermos), tenho esperança de voltar a poder confiar nos outros. Esperança é algo que não me falta actualmente e muito contribui para isso conhecer a fundo pessoas doutras culturas. As suas vidas, as suas ambições, os seus caminhos, os seus medos… Ter uma mente aberta neste intercâmbio de culturas proporciona-nos sempre lucros que são impossíveis de mensurar.

Lenda acessível – Impossível de imaginar há um ano atrás era a de que poderia chamar de amigo a uma das maiores lendas do atletismo da Polónia. Alguém que meteu o record nacional dos 200m num excelente nível internacional (actualmente 12º país em termos de record nacional na distância).


Rafael Lopes

Num dia como todos os outros, o meu bom amigo Przemek que esteve em Portugal a estudar e a treinar com o prof. Nuno Alpiarça, enviou-me uma mensagem que queria ir treinar. Ele que já trabalha e muitas horas, só treina de vez em quando e “para a praia”, digamos assim. Mas naquele dia, como se destino fosse, quis ir treinar comigo (eu que treinava geralmente sozinho) e chegando à pista, diz-me: “Provavelmente hoje vais conhecer o Marcin Urbaś. Ele está cá.” Ele que abandonou a competição no inicio desta época, estava a dar treino ao seu único atleta, Arek, e mal viram chegar o Przemek, vieram cumprimentá-lo. E sem ser necessário o Przemek dizer alguma coisa, eles apresentaram-se a mim. Pude logo confirmar o que o Przemek me tinha dito: “Ele sempre foi uma estrela mas nunca se portou como tal”. Quis logo saber sobre como estava a Espanha (eu devo ter ar de espanhol…) mas quando lhe disse que era português, quis logo saber sobre o que anda a fazer Francis Obikwelu, ele que “fez record pessoal na mesma prova que eu fiz o meu em Sevilha 99” mencionou rapidamente sem me dar tempo de resposta. Perguntou-me também por Carlos Calado, alguém que diz ter conhecido bem. Fiquei logo espantando com tanta simpatia e acessibilidade, fazendo-me logo reparos e elogios sobre os exercícios de força que realizava na caixa de areia.

Oportunidade - Digamos que aquele dia marcou uma mudança na minha vida aqui. Passados dias, voltámo-nos a encontrar no estádio e em conversa, disse-lhe que estava a estudar na Universidade de Economia.
Por coincidência, estava a estudar na mesma universidade que o Arek e também por coincidência, eles precisavam de um atleta para a estafeta de 4x100m para o Nacional Universitário… Perguntaram-me logo se não queria preencher a vaga. Claro que queria mas disse a verdade, a de que não sou rápido e que só fizera 100m em juvenil e em 12s. Mas o Marcin disse-me logo que não era problema e combinámos cooperar até aos campeonatos nacionais universitários.

No entanto ele, cujo objectivo enquanto treinador é criar um talento de raiz (“levar alguém dos 13s aos 10,30s nos 100m”) não rejeitou quando lhe pedi, semanas mais tarde, para continuarmos a cooperação após o evento e senti-me cada vez mais em casa. Por eu não ter trabalho de inverno, a base fundamental para uma boa época, só trabalhámos aspectos técnicos, tanta na corrida como nalguns exercícios de ginásio. O Marcin quis tratar de certos aspectos e ensinar-me exercícios novos para não termos de nos preocupar com isso na próxima época.

Conhecimento tácito - Comecei a passar mais tempo no estádio… Não só fazia o meu trabalho como depois do treino, observava, ouvia e aprendia. Lembrei-me de conselhos amigos para eu aproveitar ao máximo e é o que vou tentando fazer.

A primeira coisa que aprendi foi a de que não é preciso treinar com grandes cargas para se ser “supersónico” e se algum sprinter polaco for a Portugal e quiser treinar no mesmo ginásio dos sprinters portugueses ficará muito surpreso e até mesmo embaraçado. Contando o exemplo que melhor conheço: O record pessoal do Urbaś no meio agachamento é 160kg e, no entanto, correu 19,98s aos 200! E nesse exercício treinava sempre com cargas entre 100-130kg… Por sinal, 160kg também é o meu record pessoal nesse exercício (fi-lo como júnior de 1º ano…) e aos 200m nem baixei dos 24seg (nessa mesma época). Aprendi que pequenas alterações técnicas provocam melhorias substanciais. Provei-o com o meu próprio corpo. Aprendi que um treinador tem de ajustar planos de treino às sensações dos atletas. Buscando outro exemplo: um dos mais promissores atletas polacos (em júnior corria 10 cinquentas) depois de passar a treinar com o treinador da equipa nacional polaca de sprinters nunca mais se aproximou inclusive de 10 oitentas e, actualmente, “fingindo” que segue o plano do treinador e cortando na carga, voltou a correr rápido... A melhor lição disto é a de que cada um tem de ter o seu treino personalizado e só é prejudicial tentar imitar este ou aquele. Aprendi que alguns campeões na pista são muito mas muito acessíveis. Com o tempo tornei-me amigo daquela lenda do atletismo polaco. Graças a ele, tive direito a momentos engraçados. Por exemplo, convidou-me para irmos ver os campeonatos nacionais em Bydgoszcz e claro que aceitei. Não sabia que teria direito a estar na bancada VIP com bancos que parecem os dos futebolistas do Benfica e (para além do Urbaś e a sua esposa ao meu lado) com o Pawel Januszewski no banco da frente e o Marek Plawgo à minha esquerda… Os dois 400 barreiristas mais fugazes de sempre deste país (48,17s e 48,12s respectivamente). Uma honra!

Desde que estou aqui já aprendi tanto mas mesmo tanto que se fosse a descrever tudo, alguém pensaria que este texto tinha pretensão de se tornar uma carta foral e já não estamos nesse tempo… Contudo, não deixa de ser verdade que estamos numa era de conhecimento tácito que é muito difícil de ser transmitido por escrita. Todos os livros sobre este assunto dizem que a melhor maneira de adquirir conhecimento tácito é trabalhar com alguém que tenha conhecimento. É por isso que não percebo certas atitudes de treinadores portugueses. De facto, numa rápida viagem ao nosso belo país obrigada pelas burocracias escolares (numa altura em que já estava a trabalhar em Poznan), aproveitei para ir dar uma forcinha aos meus amigos “varistas” Edi, Ângelo, Hugo e Carlos nos Campeonatos de Portugal e voltei a ver do mesmo. A maioria dos treinadores, mal os seus atletas acabam a competição, vão dar “uma volta” (tal como os seus atletas), não ficando ali no espaço onde estavam… Podem não querer apoiar o atleta X mas podiam ficar ali a vê-lo fazer o que faz tão bem (porque de longe é difícil ver pormenores). Podem não querer estar perto do seu treinador mas podiam ficar ali a ouvir as suas indicações técnicas. Será que isso faz parte de “aprender”? Sem sombra de dúvidas…

Nota: Não se pense porém que aprender é fácil… Não é que me queixe porque sempre foi o meu objectivo quando vim para cá mas aprender tem os seus custos e sacrifícios. Houve alturas em que tive alguns problemas pessoais. Mas felizmente tudo se resolve e só posso agradecer a compreensão dos meus pais, da minha namorada e do meu “patrão” já que o tempo não deu para tudo e por vezes tive em falha. Não cumpri com palavras... Falhei com prazos… Mas quando nos deixam à vontade para prosseguirmos com os nossos objectivos pessoais, só podemos agradecer e ter muito vontade de retribuir. Obrigado pais, obrigado Eunice! Dziękuję Przemek, Urbaś e Arek. Obrigado Atleta-digital.com.

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Comentarios (2)add feed
Muito bom, sr. Ministro, muito bom... : Mister
smilies/wink.gif Não há que agradecer. A vida é tua. A luta é tua. O futuro é teu e faz-se do presente. Continua o teu percurso sem ondas. Os pódios globais são poucos mas os pódios individuais são infinitos. Iluminados serão sempre aqueles que virem os seus pódios e lutem para os obterem.

Agosto 22, 2009
... : Nice
Amor, ninguém pode ter mais confiança e força em nós, do que nós póprios, esses seis meses fizeram-te bem, não só a nível profissional, como a nível físico e psicológico, pois regressas com mais esperança, com mais sabedoria e com mais vontade, vontade de lutar e de querer, porque ouves quem te ensina, e isso é que é HUMILDADE, é saber aprender e ouvir, quem percebe e quem sabe,e essa humildade ninguém te tira, é a humildade que faz reconhecer e tu reconheces quem te ajuda,quem te apoia! é a humildade que faz querer aprender, saber mais e mais...e tu queres sempre saber mais e mais! humildade é sentir-se realizado, sem ter de mostrar isso a ninguém e os que te rodeiam sentem-se realizados por ti, porque tu dás alegria e fazes-nos sentir orgulhosos de ti!

um beijo@
Agosto 27, 2009
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