Black Jack - Experiência de Sudtirol

Sexta, 10 Julho 2009
Emanuel Vital e Teresinha Noronha são os repórteres de serviço para este Mundial de Juvenis. Aqui fica a experiência do seu primeiro dia.

Black Jack


- Não pode ser! Não pode dizer que não tem reserva de alojamento para este turista. Dona Maia, este é o seu nome e o seu endereço de e-mail que está impresso - diz o "carabinieri" apontando para o papel que segurava na mão.

- Não é possível, não tenho registo dessa pessoa. Não pode ser meu cliente! - assegurava Maia Amort, ainda ensonada. Não esperava ser acordada às 5 horas da madrugada pela polícia. A noite ainda não se havia despedido, mas a Sra. Amort não teve outra solução que sair de casa e procurar resolver aquele embróglio. Ademais, o "carabinieri" mostrava-se intransigente e não sairia dali enquanto o turista não estivesse alojado.

Entre os sinais de hipotermia, que a voz entrecortada e os tremores do turista revelava, e o pedido de ajuda que não podia ignorar, ao carabinieri não restavam dúvidas: este era daqueles momentos em que o dever e o sentido de missão, se juntavam à solidariedade humana. Era claro que não havia bandidos nem violência na cena. E ele estava em posição e sentia ter o poder de resgatar aqueles dois turistas a uma noite de vendaval, em que o infortúnio do destino os atirou para uma condição de "sem-abrigo".

Por fim, com mais duas ou três insistências, com o acentuar dos tremores de frio do turista, e com a postura firme do agente de autoridade a Sra. Amort abriu a porta do edifício.

- Que calor, que conforto, que bom... os olhares daquele homem e daquela mulher cruzaram-se, e a sensação de alívio era o que se lia naqueles olhos, naquele momento.

Um banho quente, e uma rendição incondicional ao sono encerraram uma jornada que havia transformado um sonho em pesadelo.

Eu e a minha mulher iniciámos viagem às nove da manhã. O Ivo, nosso filho, levou-nos até à estação em Caldas da Rainha. Despedimo-nos dele desejando-lhe a maior das sortes para os Jogos da Lusofonia. Um autocarro atrasado levou-nos até Sete Rios. Uma viagem normal de taxi fez-nos chegar ao aeroporto da Portela. A senhora do balcão informava-nos, entretanto, que o vôo para Milão estava atrasado. Alguma intranquilidade foi surgindo em nós, porque isso poderia condicionar o acesso à ligação do comboio.

O avião chegou a Milão com uma hora de atraso.

A ansiedade foi-se apoderando dos nossos espíritos. Agora era preciso encontrar a estação Central de comboios.
Procurámos pelo transfer para a estação de comboios e ficámos a saber que ela ficava a 50 Km de distância, em Milão. As facilidades nas acessibilidades que as informações obtidas através da internet indicavam, iam-se esfumando...
Talvez invadidos por esse sentimento de nada poder fazer para alterar o nosso fado, Milão foi perdendo encanto a cada minuto que passava, a cada milha percorrida. O cinzento da paisagem poluída, os armazéns decadentes, os prédios sem estética nos subúrbios ensombravam o horizonte, cada vez mais distante...
De Milão para Verona, o comboio regional mais lento e sem encanto, tornava a viagem mais longa. Verona, contudo, chegou. Três horas depois de havermos pisado o solo italiano, podíamos finalmente tomar um transporte cujo destino final se escrevia com a palavra Bressanone.

Debalde!
Às 20.30h a senhora das informações garantia que a próxima ligação de comboio para Brixen (a designação saxónica de Bressanone) seria às 7 horas... ...da manhã do dia seguinte. Que alternativas, questionámo-la?

- Bolzano, respondeu. Fica a cerca de duas horas de comboio e chegados lá poderíamos, com sorte, tentar uma carreira de autocarro, ou existiria sempre a possibilidade de um táxi.

Às 21.09 horas partimos rumo a Bolzano.
Os 150 Km que nos separavam daquela cidade perdiam-se no breu nocturno, sim, porque a lua cheia perdera a batalha contra as nuvens que se adensavam.
Hora e meia depois, o comboio parecia perder vontade de andar e estacou.
Passaram-se dez, quinze minutos. Imóvel...
Conseguimos finalmente ser informados que, mais à frente, uma violenta tempestade afectara a energia eléctrica.

E não havia hora prevista para retomar viagem.

O ar quente e húmido estava a ser substituído por um vento fresco e por chuva forte. Mais à frente, uma moça procurava com os seus longos cabelos cobrir os seus ombros desnudos, sem conseguir esconder uns arrepios de frio. Os nossos casacos, e o polar de reserva sentiram-se desejados.

Uma hora, duas horas e nada. Quase incrédulos, passava já da uma da manhã, lentamente, o comboio retomou a medo a sua marcha. Com um ritmo soluçado, ora mais lento ora se detendo hesitante, mas por fim sempre avançando.

Entretanto o vendaval foi cedendo.

Chegámos a Bolzano depois das duas horas. Escusado procurar carreira de autocarro a essa hora. Bressanone, a cerca de 45 Km de distância só poderia ser alcançado de táxi. Mas àquela hora, os poucos táxis foram ocupados pelos passageiros que primeiro sairam do comboio.
O tempo passava e a fileira de espera ia engrossando. Vimos surgir um taxi. Fomos surpreendidos por uma fura-fileiras que, lesta, entrou para o táxi. Apressei-me a chegar ao taxi e tentei puxá-la para fora. Podia sentir-se os olhares admirados mas aprovadores de quem estava à espera de táxi. E um burburinho se instalou. A fura-fileiras, agarrada ao assento dianteiro do táxi, resistiu aos meus dedos cravados no seu braço e o taxista não acedendo aos reparos dos presentes conseguiu arrancar contra a desaprovação geral. A moça de ombros desnudos e cabelos compridos, tiritando de frio, ficou praguejando em italiano contra aquela vil mulher que lhe roubara a vez.
Felizmente, entretanto, mais táxis chegaram e aquela moça, com indumentária de verão pôde finalmente seguir o seu destino, e também nós, pouco tempo depois.

Chegámos a Bressanone pouco passavam das três horas. Diligentemente o taxista depois de vários telefonemas e pedidos de informação chegou ao hotel-residencial onde tínhamos reservado o nosso alojamento.

A porta trancada impedia-nos de entrar. Telefonámos para o número indicado no papel de reserva. Nada. O taxista quis ficar connosco e foi tentando telefonar, em vão. Nem na porta, nem no átrio de entrada havia qualquer informação que nos pudesse ajudar a localizar o recepcionaista ou qualquer outra pessoa.

Depois de 10 minutos convencemos o taxista a seguir a sua viagem, pagámos uma "boa nota" e ficámos por nossa conta, defronte do nosso destino que se recusava em nos receber.

Vencidos meia hora depois, após inúmeras tentativas, aceitámos, relutantemente, a nossa realidade.
O frio da noite e a instabilidade do tempo obrigou-nos a procurar refúgio. Sem abrigo, encontrámos bem perto, um local para nos protegermos e descansarmos. A alcatifa do chão da entrada daquela loja de pronto-a-vestir foi o bónus que o destino nos ofereceu naquela noite.
Black Jack era o nome da loja. Black Jack foi o nome do refúgio que o destino nos reservou.
Apercebemo-nos o quão importante é uma caixa de cartão para um "sem-abrigo", e os jornais...
A aragem fria que se fazia sentir pedia que nos cobríssemos, mas tínhamos deixado o jornal no avião.

E a nossa terra tão longe...

Usámos as malas como barreiras para nos protegermos do vento e, encostados um ao outro procurávamos maneira de manter o calor.
O homem do camião do leite passou para deixar o produto à porta de uma loja, mas ele também foi impotente para nos ajudar apesar dos seus esforços.

Mais um carro passou. Apressei a levantar. Entretanto já tinha passado. Era um carro da polícia. Se consegíssemos falar com eles talvez nos pudessem ajudar.
Mas já não havia ninguém por perto, e às quatro e meia da manhã, sem conhecer o local decidimos mantermo-nos naquele refúgio, que, pelo menos, nos poderia proteger do frio e da chuva.
Deitámo-nos e desejámos que o tempo passasse depressa. Mas a cada vez que olhávamos para o relógio, o tempo, preguiçoso apenas havia avançado cinco minutos.
Mais um carro. Era de novo a ronda da polícia. Atalhou por uma ruela estreita e eu atrás esbracejava e tentava aproximar-me dele. As rodas do carro venceram as minha pernas. Recolhi para junto da minha mulher.
Sentíamos que estávamos noutra dimensão, num ambiente desconhecido, surrealista, em que a tragédia parecia por vezes cómica, irrompendo insistentemente para uma realidade bem mais dramática. E o frio ia aos poucos tomando conta dos nossos corpos. E a nossa alma parecia ir gelando à medida que os minutos e os segundos iam passando.

Mais um ruído de motor.

- Vai ver quem é - diz-me em sobressalto a minha mulher. Voltei a saltar e a sair daquele canto. Era outro carro da polícia. Consegui desta vez que me vissem. E dirigi-me para eles. Ficaram a saber da nossa história.
E nós ficámos em boas mãos, aos cuidados de um "carabinieri" que não quis revelar o seu nome quando procurámos saber a quem devíamos dirigir o nosso "Grazia tanta!!!".

Comboios

Autor: Emanuel Vital

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Comentarios (3)add feed
que dia de azar... : António Carvalhal
Que prova

Julho 13, 2009
... : Cátia Santos
Partilhar um pedaçinho da história de amor, de uma forma tão empolgante quanto a experiência vivida, é no mínimo fabulástico.
Temos reporter, sim senhor!
smilies/wink.gif
Outubro 24, 2010
Tempestade : Filomena de Morais Sarmento
Que bonito relato!
Gostei da história.
Foram realmente,muito corajosos.
Março 04, 2014
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