A carreira internacional do mais bem sucedido juiz português.
Jorge Salcedo já atingiu por duas vezes o sonho de qualquer juiz e do que lhe resta da carreira, pouco mais ambiciona, embora esteja longe de ser um livro fechado...
Em dia de aniversário o Atleta-Digital publica a segunda parte de uma das mais interessantes entrevistas alguma vez feitas, pelo carisma de Jorge Salcedo, que é o dirigente e juiz português com mais peso internacional, sem nunca esquecer Portugal e os portugueses. A carreira é ímpar, as histórias são muitas. Neste dia de aniversário do Atleta-Digital, vamos conhecer a fundo Jorge Salcedo...
SUCEDEU AO PAI SALCEDO, O PAI QUE SÓ TEVE OPORTUNIDADE DE CONHECER ATÉ AOS 14 ANOS
Reservado e modesto, estas são duas palavras que descreverão bem o que é Jorge Salcedo e que justificarão parte do seu sucesso nacional e internacional, porque costuma ser consensual e quando não o é tem suficiente argumentação para determinadas tomadas de decisão. Quando se pede para falar do seu passado, o nosso entrevistado tem todo o gosto em explicá-lo...
Atleta-Digital : Como foi a sua chegada ao atletismo e como foi progredindo na modalidade?
Jorge Salcedo : A minha entrada como espetador no atletismo foi devido ao meu pai, que foi atleta. Ele tinha sido um razoável atleta nos anos 20. Em 1921 fez 11,0 segundos aos 100 metros, na prova em que Gentil dos Santos bateu o recorde com 10,8. Esteve muito ligado ao atletismo, no Sporting, na Associação de Atletismo de Lisboa e na Federação Portuguesa de Atletismo, onde foi presidente (até 1965). Eles acabaram por se demitir, o que em 1965 não era habitual e até gerou notícias no jornal indicando que eram comunistas...
O pai Salcedo foi, assim, uma grande influência para Jorge Salcedo, apesar da idade avançada em que foi pai (50 anos), ainda para mais sendo Jorge o filho único. Acabaria por falecer em 1967, apesar de Jorge Salcedo continuar atento à modalidade após o trágico falecimento do seu pai. A oportunidade de ser juíz apareceu anos mais tarde, após um inesperado telefonema : « Em 1974 telefonaram-me para casa a perguntar se eu queria fazer o curso de juízes. Como me ligaram, aproveitei esta oportunidade.». Com 21 anos Jorge Salcedo entrava, assim, numa carreira a que nunca mais se desligou, embora admita que tal poderia até não ter ocorrido tão cedo...De juíz nacional a internacional foram uma mão cheia de acasos, mas onde o próprio admite que «ajudou o nome Salcedo». No entanto na carreira de Jorge Salcedo destacam-se ainda os cargos que teve na Associação de Atletismo de Lisboa (na Direcção de Mário Paiva) e que ainda possui na Federação Portuguesa de Atletismo.
Atleta-Digital : Quando começou como juiz nacional e como passou depois para juiz internacional ?
Jorge Salcedo : Na altura ser juiz nacional era fácil , porque era automático. Rapidamente, dois ou três anos depois, começaram por me nomear como juiz-árbitro. Até que em 1983 recebi a minha primeira nomeação internacional, apesar de ninguém me conhecer lá fora. À época a Associação Europeia de Atletismo solicitava um nome à federação de cada país, para hipoteticamente ser nomeado. A verdade é que não tinham escolhido nenhum nome português até à data. Na altura indicaram o meu nome no formulário, numa altura em que os atletas portugueses já estavam a ter resultados internacionais e desta forma calhou ter sido o primeiro juiz internacional de Portugal. Dois anos depois ainda mantiveram este sistema, entretanto fui convidado para ser diretor da Federação Portuguesa de Atletismo. Um ano depois tivemos o Campeonato do Mundo de corta-mato e o Carlos Manuel Santos, a quem tenho de agradecer muito, achou por bem nomear-me como responsável no hotel onde estava a IAAF. Fiquei no hotel praticamente sozinho , com uma pessoa...isto implicou que pessoas da IAAF, que não me conheciam, passassem a conhecer e isto levou que no ano seguinte a IAAF me tivesse nomeado como juiz no Meeting de Barcelona...
Atleta-Digital : Como acabou por chegar à IAAF e à EAA?
Jorge Salcedo : Aí devo à direção da Federação Portuguesa de Atletismo (da primeira vez era o presidente Henrique Melo). Para as eleições de 1991 tive a segunda indicação para membro do Comité Técnico da IAAF – quando se é de um país que não é dos grandes países do Mundo tem de se ser conhecido – e também achou por bem candidatar-me ao Conselho da Associação Europeia de Atletismo e fui eleito para os dois lados e assim tenho continuado até hoje. A diferença é que em 1999 o presidente do Comité Técnico reformou-se e fui contactado por alguns colegas para ser o próximo presidente que, depois de tanto insistirem, fez com que a FPA me tenha colocado como candidato.
Na vida internacional é entre a Associação Europeia de Atletismo (EAA) e a Federação Internacional de Atletismo (IAAF) que Jorge Salcedo “vive”, embora maior parte do tempo passe em Portugal, na sede da Federação Portuguesa de Atletismo onde hoje é Secretário-Geral. « Logicamente tenho de agradecer ao presidente da FPA porque tenho algumas saídas e se saio alguém tem de me substituir nessas alturas. Naturalmente que as novas tecnologias nos permitem trabalhar em vários locais diferentes », indicou-nos, mostrando como é possível acumular tantas funções diferentes.
O DESERTOR FRANCÊS QUE DEU ACESSO A SER DELEGADO TÉCNICO DOS JOGOS OLÍMPICOS
Como ao longo da conversa Jorge Salcedo nos explicou, vários pormenores da sua vida ocorreram por acasos, mas serão mesmo acasos?! A extrema modéstia de Jorge Salcedo é um dos traços que definem a personalidade de um juíz que prefere dar o destaque ao coletivo, até porque a delegação de competências é a sua clara aposta e isso tem produzido até agora um bom coletivo de juízes em Portugal, já que é um dos grandes responsáveis pela formação de juízes no nosso país. No entanto, individualmente, além de ter sido o primeiro juíz internacional, tem ainda no seu histórico várias posições de destaque, tendo sido chefe dos ITO’s (juízes internacionais) em Sidney (2000), cargo que voltará a desempenhar este ano em Londres, depois de duas edições em que foi Delegado Técnico (Atenas e Pequim)...
Atleta-Digital : Quando dizem que é o melhor juíz mundial, reconhece-o ou a sua modéstia não permite assumi-lo?
Jorge Salcedo : A minha modéstia não o permite. É difícil dizê-lo, porque as pessoas não conhecem toda a gente. O que tentamos fazer é mostrar que Portugal também pode ter juízes de Alta Competição. Depois o que conseguimos fazer passa para o exterior, o que nos deixa muito satisfeitos...Independentemente do conhecimento técnico que possamos ter, é importante o modo como trabalhamos em equipas de ajuizamento internacional.
Atleta-Digital : Como foi ser chefe de juízes e delegado-técnico em Jogos Olímpicos?
Jorge Salcedo : Quando se é juiz de atletismo imagino que o sonho é ir aos Jogos Olímpicos. Quando fui chefe dos ITO’s claramente fiquei satisfeito, embora honestamente pensasse que já podia ter sido nomeado antes. Em Atenas também fui nomeado chefe dos ITO’s, mas o acaso voltou a bater-me à porta. O diretor de competição fugiu, não aguentando a pressão, antes dos Jogos Olímpicos e um colega de equipa assumiu parte da responsabilidade, mas acabou por ter um problema cardíaco. Pediu escusa e depois acharam por bem nomear-me a mim para substituir o colega. Nos Jogos Olímpicos seguintes já fui escolhido desde princípio delegado técnico nos Jogos Olímpicos de Pequim. É como uma medalha de Ouro, acima disto é difícil.
Atleta-Digital : Sente que apesar da sua brilhante carreira, ela é pouco reconhecida no desporto nacional?
Jorge Salcedo : Acho que se considerar a área técnica realmente não há muita consideração. Ainda assim no meu caso particular já houve reconhecimentos nacionais, quer da federação, quer das associações e do Comité Olímpico de Portugal.
A REGRA QUE “TRAMOU” USAIN BOLT É TAMBÉM CULPA DE JORGE SALCEDO...
Não é novidade, mas Jorge Salcedo é um dos defensores, já que foi um dos responsáveis pela implementação da regra da falsa partida, que elimina automaticamente o infrator ao primeiro erro. A sua implementação, pela primeira vez, no Campeonato da Europa de Equipas, em Leiria, fica para a história...
Atleta-Digital : É um dos responsáveis do tormento de Usain Bolt em Daegu. Ainda sente a regra como justa depois de todo o turbilhão gerado?
Jorge Salcedo : Sim. No estrangeiro chegaram a indicar o meu nome como o “idiota” da ideia da falsa partida, apesar de ter sido apoiada por toda a IAAF. Alguns indicavam que o objetivo desta proposta era combater os atletas que jogavam. Muita gente disse que a televisão era a culpada por esta regra, mas não foi esse o fator principal. Foi mesmo o jogo de atletas, que o assumiam, da primeira falsa partida para perturbar os outros. Quanto ao facto do Bolt ter sido desclassificado, não é por isso que devemos mudar a regra. Um argumento que tinha sido utilizado na altura dos Mundiais de Edmonton, contra esta regra, era de que nunca mais se bateriam recordes do mundo, o que acabou por ser mentira. O que não sou responsável, mas que me tem incomodado um pouco, é que ainda hajam grupos de juízes de partida que não apliquem bem a regra da falsa partida, relativo ao movimento nos blocos (que não é razão para a falsa partida). Ainda temos juizes de partida, alguns internacionais, que ainda aplicam mal a regra...
Atleta-Digital : Quais são os desafios que o atletismo terá de enfrentar na próxima década? Que alterações fazer?
Jorge Salcedo: Quando foram introduzidas algumas daquelas hipóteses de regulamentação (Camp. Europa de Equipas), por parte de Portugal, a abertura foi tal que, desde que não sejam dados mais direitos aos atletas, as organizações podem apresentar as competições de maneiras muito diferentes. O nosso regulamento técnico permite que se façam muitas coisas, por aí o desafio está em aberto. O nosso desporto não é fácil de acompanhar e as pessoas podem-se perder a meio de uma competição, embora seja verdade que a apresentação do evento pode ajudar os espetadores. Temos um desporto que compete com muitos, que se calhar para a juventude são muito mais apelativos que o nosso. Acho que o desafio é o atletismo na escola ter outro tipo de promoção, não só em Portugal.
Atleta-Digital : Sente que Portugal tem uma boa estrutura de juízes, superior a outros países?
Jorge Salcedo : Em termos regionais os juízes têm de funcionar no número possível e nas condições que existem e habitualmente fazem-no tecnicamente bem. Quando organizámos competições em que as condições existiram nunca ficámos mal vistos, bem pelo contrário. Temos, em termos de equipa de juízes, do melhor que há no Mundo e também em termos individuais. Felizmente até reconhecem isso lá fora...
Atleta-Digital : Nas várias viagens que faz, qual a imagem que os agentes do atletismo internacional têm sobre o atletismo português?
Jorge Salcedo :Têm normalmente boa imagem. Não é a primeira e última vez em que eles falam de nomes de atletas portugueses, alguns atletas do passado e outros do presente. Se forem pessoas já conhecidas do meio, têm uma boa imagem nossa ao nível de organização de grandes eventos.
DO CASO DE SARA MOREIRA ÀS AMBIÇÕES INTERNACIONAIS
O papel de Jorge Salcedo na Federação Portuguesa de Atletismo é de extrema relevância, apesar de considerar que as mesmas poderiam ser bem desempenhadas por outro qualquer dirigente. Recentemente teve uma tarefa importante, a de ser relator no caso de doping de Sara Moreira, assumindo desde já que a sua exposição não terá nunca objetivo de ambições em Portugal, mas eventualmente no âmbito internacional...
Atleta-Digital : Ser relator no caso de Sara Moreira, foi um risco para si, pela credibilidade que tem, ou foi uma vantagem para um correto entendimento do caso?
Jorge Salcedo : Fui relator na fase inicial apenas. Apesar de sermos conhecidos e as pessoas falarem comigo à vontade...Nesta fase é tudo factual. Acho que eu ou outra pessoa qualquer o poderiam ter feito.
Atleta-Digital : Alguma vez ponderou um dia vir a ser presidente da Federação Portuguesa de Atletismo?
Jorge Salcedo : Nunca, jamais pensei ou pensarei no assunto. Primeiro porque não tenho ambição para isso, em segundo porque não tenho perfil para o ser. É preciso ter um determinado perfil que eu não tenho...
Atleta-Digital : E os cargos internacionais, gostaria de um dia chegar mais alto nas estruturas europeias ou mundiais?
Jorge Salcedo : Aí poderia ser diferente. Muita gente nos últimos anos, desde 1999, me perguntou porque é que não era candidato ao Conselho da IAAF. E existe uma razão, que ainda se mantém, que é o facto de quem está na Associação Europeia de Atletismo não estar no Conselho de outro organismo. Não vou dizer que não poderia ter sido possível no passado, mas teria de sair da Associação Europeia de Atletismo e eu gosto muito de estar lá. O facto de ser presidente do Comité Técnico permite-me intervir na vida da IAAF, não da mesma maneira, mas de forma que me satisfaz. Pode um dia acontecer, já estou quase com 59 anos e pode haver um dia que esteja cansado da Associação Europeia de Atletismo e tente ir para o Conselho da IAAF. Continuo a achar que não tem sentido estar nos dois Conselhos. A IAAF tem-me dado a possibilidade de ser presidente do Comité Técnico e posso continuar a fazê-lo...
DA BIOLOGIA AO GOSTO PELA ÓPERA...E O APOIO FORTE À MÃE QUE SE HABITUOU AO ATLETISMO
Biólogo de formação, formado nas antigas instalações da Escola Politécnica de Lisboa, que deram origem à atual Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, esta foi uma das suas vidas paralelas ao atletismo. « Na altura quando entrámos era um curso de cinco anos mas depois separou-se pela via educacional e científica e optei pela via educacional. Fui professor desde 1975 a 1992, o momento em que fui requisitado por esta federação».
Atleta-Digital : Quais os seus hobbies pessoais, fora do atletismo?
Jorge Salcedo : O principal é a música, especificamente a ópera. Infelizmente a ópera cá tem um nível muito baixo. Às vezes nas organizações internacionais aproveito e vou à ópera. Ballet também gosto muito, depois de ver uma espanhola, no ballet de Londres, que me fez começar também a ir ao ballet.
Atleta-Digital : Sei que a sua mãe é uma parte muito importante da sua vida e que até já preferiu não estar num grande evento para a acompanhar. Que nível de importância tem ela para si?
Jorge Salcedo É lógico, tem muita. O meu pai teve e a minha mãe também tem. Quando o meu pai morreu, e como ela era desempregada, viu-se com um filho nos braços e em situações complicadas. Alguns amigos do meu pai deram-lhe emprego durante uns anos. Acho que nessa altura fui um pouco egoísta, não colaborei o que acho que devia ter colaborado. Logo que ganhei o primeiro ordenado a sério ela acabou por deixar de trabalhar. A saúde dela ia dando para o que era necessário, mas nos últimos anos tem sido mais complicado. Disse-me algumas vezes : “não tive marido por causa do atletismo e agora não tenho filho por causa de atletismo”. Enquanto poder vou tentando compatibilizar...
DUAS HISTÓRIAS A FECHAR...
Para além de desempenhar funções de enorme responsabilidade, com níveis de satisfação à altura dos acontecimentos, Jorge Salcedo é também um ótimo contador das suas próprias histórias, que motivariam com toda a certeza um livro dentro de anos, se fosse essa a sua vontade. Ao Atleta-Digital contou duas interessantes histórias, uma que traça bem o seu perfil apaziguador, a outra que traça bem o seu perfil de português (com soluções rápidas...)
Jorge Salcedo : Nos Mundiais de Paris era chefe dos ITO’s e veio uma equipa de gregos para ver como se faziam as coisas. Foi-me apresentado aquele que seria o diretor de competição e eu não gostei dele, por ser arrogante, por se sentir superior. Passado uns meses fui a Atenas substituir o meu colega e antes convidou-me para ir a Atenas dar dois dos três seminários. O primeiro seminário coincidiu com o campeonato grego de pista coberta. Fiquei lado a lado com o Andreas (o tal que Jorge Salcedo não tinha gostado) e reparei que ele se tinha modificado. Ele mostrou-me os planos e pediu-me opinião e verifiquei claramente que ele queria mostrar como as coisas estavam bem organizadas. Continuei a ter contacto com ele e tornámo-nos amigos...Interessantemente os meus dois outros colegas não gostaram dele até ao fim o que significava que se houvesse algum problema era eu que falava com ele. A maior prova de amizade aconteceu depois de um problema num concurso de salto com vara, onde ele aceitou a minha opinião de resolução, apenas devido à amizade que tinha por mim. Durante estes anos não nos temos encontrado e no ano passado telefonou-me para eu acompanhar a filha dele, que esteve em Erasmus em Portugal.
A outra situação foi em Pequim, com o Nelson Évora, na qualificação do triplo salto. A zona de balanço só tinha 48 metros, quando há atletas que precisam de corridas de balanço superiores. Tínhamos combinado prolongar as zonas de balanço e a Organização garantiu-me que iriam fazê-lo. O responsável pela seleção nacional, Luís Leite, fez um pedido para o Nelson Évora ter uma corrida de balanço de 52 metros, pedido que chegou a mim. Falei com a organização chinesa, que confirmou que não havia problemas. O triplo salto era na manhã seguinte. Mal cheguei, no dia da qualificação, entrei na pista, pus um pé em cima e na primeira caixa não havia o tal prolongamento, fui à outra e essa estava prolongada. A minha solução foi ir para a câmara de chamada e conforme eles fossem entrando nós íamos perguntando quanto é que eles precisavam para a corrida de balanço. Na câmara de chamada peguei nos cinco que menos precisavam do corredor prolongado e coloquei-os na outra caixa e meti quem precisava na que tinha prolongamento. Obviamente que quem não gostou da medida foram as televisões, que já tinham tudo programado para a qualificação...
Edgar Barreira
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