O dia em que o Super-Homem chorou

Quinta, 06 Setembro 2012
Dia 10 de Junho de 2009, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas e eu estava em Poznan, na Polónia, a trabalhar na Sport & Business Foundation. E lá, não era feriado. Por isso pedi encarecidamente para me “libertarem” naquele dia porque não queria mesmo perder uma oportunidade única. Ver o meu ídolo das pistas correr ao vivo – Félix Sanchéz.

Reparem que só três dias antes é que tinha ficado a saber que ele ia ao Meeting Enea Cup, em Bydgoszcz (uma cidade a cerca de 3 horas de Poznan) depois de ele ter comunicado na sua página do Facebook que tinha aterrado na Polónia. O meu comentário foi logo “Eu estou na Polónia e vou a Bydgoszcz ver-te correr barreiras como ninguém o faz”, recebi um “Cool!”. Ele tornou-se a minha maior referência no atletismo desde 2003, num ano em que era iniciado e em que comecei a ter resultados interessantes em provas com barreiras. Desde então, é o meu “Super-Herói” favorito.

Lá fui sozinho de comboio até Bydgoszcz mas sem ilusões: sabia perfeitamente que não iria ver um resultado espectacular pois iria ser a primeira prova de 400m barreiras da época de Sánchez. Mas fui carregado de emoções pois iria ver alguém cujas vitórias me fascinam e derrotas me entristecem como poucas coisas o fazem.

Em 2009, Super Sanchéz estava a recuperar de uma época de 2008 em que só competiu numa prova fruto de várias lesões. E essa competição foi a primeira eliminatória dos Jogos Olímpicos de Pequim… Nesse dia, os meios de comunicação desportivos mundiais deram conta da “morte” do Super-Homem. Félix Sanchéz esteve irreconhecível, tendo sido 5º na sua eliminatória com uma marca que já não fazia desde os 20 anos: 51,10s… Poucos se interessaram pelos motivos e muito menos os souberam…

Voltando 35 anos atrás… Nascendo em Nova Iorque, filho de pais dominicanos, Félix Sánchez soube desde cedo que queria deixar uma marca na história do Desporto. Aos 10 anos, os seus pais divorciaram-se e foi com a mãe para a Califórnia. No entanto, como a mãe trabalhava muitas horas, o pequeno Félix passava muito tempo com a sua avó e foi esta, Lilian Peña, que teve extrema importância na formação da personalidade daquele que, anos mais tarde, ganharia a alcunha de Super-Homem. Ensinou-lhe que a vida era dura e obrigou-o a sentir as dificuldades da mesma porque quis que ele começasse a ser forte desde criança e a lutar pelo que queria.

Influenciado pelas suas origens, começou a jogar Basebol… Por ironia do destino partiu o pulso e, no período em que não pôde jogar basebol, foi experimentar Atletismo. Na sua primeira prova, participou nos 100m numa pista de cinza. Era o único com ténis de bicos mas foi último destacado com 13 segundos. Nesse mesmo dia, nas séries femininas de 100m, houve raparigas da sua idade que fizeram melhor tempo! Foi alvo de muitos risos… Podia ter sido breve a passagem de Félix pelas pistas mas tenho a certeza que este ínicio no Atletismo foi fundamental para o que se viria a tornar. Começou a treinar regularmente para vencer aqueles que se riram dele. Quis encarar de frente os “problemas” e “dificuldades” quando o mais fácil era fugir delas e tentar a sorte noutra modalidade. Ganhou personalidade e endureceu o seu carácter. Tornou-se um campeão para a vida (porque os campeões não se encontram só no Desporto, nem se medem apenas por medalhas e taças).

Depois do riso dos outros atletas, o seu próprio treinador disse-lhe que nunca iria ser ninguém nas provas de velocidade porque era muito baixo e tinha pernas pequenas. Disseram-lhe que não era possível e aí Félix começou a treinar mais ainda e e começou a virar-se para as barreiras. Aos 15 anos, já corria 300m barreiras em menos de 37 segundos!

Em 1999, entrou nos Trials Americanos (uma vez que tinha dupla nacionalidade) para o Campeonato do Mundo de Sevilha, mas ficou fora dos três primeiros lugares e não conseguiu uma viagem para Espanha. Conseguiria através da República Dominicana, país onde ainda ninguém tinha ouvido falar de si.

Em Sevilha ficou-se pelas eliminatórias dos 400m barreiras com 49,67s, um ano mais tarde nos Jogos Olímpicos de Sidney, chegou às meias-finais, o que lhe soube a pouco. Na Cerimónia de Encerramento dos Jogos em Sidney, recebeu uma pulseira a pilhas que brilhava e fez dela um amuleto, que se tornou uma imagem forte. De facto, com ela, Félix Sánchez tornou-se “Super”, e começaram-lhe a chamar Super-Homem, fazendo referência à tatuagem que o dominicano tinha feito nos tempos de Universidade.

Com o amuleto, Sánchez começou uma série de vitórias de que não havia memória desde o grande Edwin Moses, também nos 400m barreiras. Sendo esta uma especialidade tão díficil, Sánchez tornou-se uma grande figura do Atletismo Mundial. No topo do Mundo, Sánchez tornou-se o “Ditador” dos 400m barreiras no inicio do milénio. Entre 43 vitórias consecutivas, venceu dois títulos mundiais (Edmonton 2001 e Paris 2003), os Jogos Pan-Americanos de 2003, uma Liga Dourada, os Jogos Olímpicos de Atenas 2004…

Após o título olímpico, Félix Sánchez aceitou doar a sua bracelete para a IAAF leiloar para fins humanitários. Na prova seguinte aos Jogos, lesionou-se e não chegou ao fim... Rapidamente passou do Olimpo para o Inferno. A imagem que tinha construído ao longo do tempo, desmoronou-se num piscar de olhos para o mundo do atletismo.

Caiu no descrédito, caiu nas profundezas, caiu no esquecimento de um meio que o adorava, e não fosse o sua formação em Psicologia e os ensinamentos da sua avó, Félix podia ter abandonado cedo esta modalidade que aprendeu a “gostar”.

Mesmo com bastantes problemas físicos e de confiança pós-lesões, Félix manteve-se entre os melhores do Mundo mas os comentadores desportivos (os tais “experts” que só olham para resultados e não sabem ver o que está nos bastidores dos resultados) continuaram a descredibilizá-lo, passaram a considerá-lo como apenas “mais um”. Cegos! Desde 2001, Sánchez não falhou uma final de Campeonatos Mundiais! Hoje tem o record de 6 finais consecutivas e isso numa especialidade tão exigente… É de valor! Mas será que lhe davam valor dizendo que “se estava a arrastar pelas pistas” e que estava a “adiar um final de carreira eminente”?

Entretanto, em Osaca 2007, Sánchez voltou em grande no Mundial e foi vice-campeão. Aí pensei que as lesões eram parte do passado e que os tempos de Ditador iriam voltar rapidamente… Enganei-me.

Em 2008 chegou aos Jogos Olímpicos de Pequim, sem a preparação ideal como confessou (graças a problemas num pé) mas com esperança de revalidar o seu título olímpico. No entanto no dia da primeira eliminatória, Super Sánchez recebeu a triste notícia que a sua querida avó tinha falecido. Fechou-se no quarto e chorou horas longe dos olhares de todos. Com alguma indecisão, familiares convenceram-no a ir para a pista porque seria o desejo da avó falecida. Mas nesse dia, o estado de espírito bloqueou-lhe as pernas e ao acabar a sua eliminatória em 5º, ajoelhou-se na pista, levou as mãos à boca para uma pequena oração e prometeu a si próprio que iria voltar a ganhar uma medalha numa grande competição e dedicá-la à sua “abuela”.

No ano seguinte, lá estava eu no Estádio Zawisza, em Bydgoszcz, para assistir à primeira prova de 400m barreiras em 2009 do meu ídolo. Paguei cerca de 4 euros para assistir a um meeting cheio de estrelas mundiais, e ao entrar no estádio, olhei para a pista de aquecimento e Sánchez estava a aquecer. Enquanto olhava para o seu aquecimento, ouço nos “speakers” a referência a um atleta português. Vou rapidamente para a pista principal e lá estava o nosso grande Edivaldo Monteiro a passar a 3ª barreira da prova B dos 400m barreiras. Fui ter com ele depois da prova e foi de uma extrema simpatia. Acabámos por ficar a falar e a ver o resto das provas juntos. Nunca me irei esquecer…

Também não me irei esquecer de ter visto Sanchéz ficar em 4º com 49,27s. Não fiquei desiludido e os meus olhos nem viram quem ganhou já que estavam só colocados no Dominicano. Soube depois que L. van Zyl foi o vencedor mas só me dirigi a um atleta. Fui à zona onde os atletas tiravam os bicos e chamei “Félix!”. E o meu ídolo, exausto, olhou para mim ao longe, levantou-se e veio ter comigo descalço num trajecto meio aos “ziguezaques”, tanto era o cansaço.

Reconheceu-me dizendo “You’re the guy from facebook? Nice!”, assinou-me uma bandeira da Polónia que eu tinha dentro da mala. Trocamos poucas palavras e despedi-me, agradecendo e desejando-lhe muita sorte e força para o Mundial de Berlim e para o resto da carreira. Félix, ofegando, nem falou, pôs as mãos à frente da boca como costuma fazer a agradecer o apoio (como pudemos ver em Londres várias vezes). Para mim, foi um grande sinal de humildade e gratidão. Fiquei mais fã ainda.

Nas semanas seguintes, a forma foi subindo e eu estava certo que o título mundial em Berlim seria dele.

E seria… não tivesse chocado contra a primeira barreira, o que lhe estragou a corrida toda… Chegou em último destacado e eu, na altura, olhando para a idade dele, pensei que a última chance de ele subir ao lugar mais alto do pódio tinha passado. Mas Félix Sanchéz é um homem dos impossíveis, de fazer parecer simples o que é muito complicado.

Em criança, disseram-lhe que não podia, que não iria conseguir nada no atletismo por ser baixo, mede 1,77m. Lutou e dominou entre 2001 e 2004 num evento com barreiras… onde a altura de uma pessoa faz alguma diferença.

Depois começou a lutar contra a idade. Falou com Fabrizio Mori e com o Stéphane Diagana e perguntou-lhes o segredo de terem tido uma carreira com bastante longevidade. Pediu-lhes conselhos… mas a falta de títulos numa carreira cheia de trabalho e dedicação e o passar dos anos, tornaram Super Sánchez cada vez mais ansioso. Passou a trabalhar com psicólogos e mudou alguns aspectos da sua preparação.
Os resultados foram evidentes:

Em 2011, no Campeonato Mundial de Daegu, ficou à beira do pódio, no 4º lugar, dando uma grande bofetada de luva branca aos especialistas que nem o anunciavam como potencial finalista antes da competição.

No inicio da época de 2012, tive a oportunidade de ir a Londres e lá, à beira de um dos relógios em contagem decrescente para o ínicio dos Jogos Olímpicos, rezei pelo sucesso do meu ídolo. Pouco depois, os resultados dele começaram a animar-me. Em Fevereiro, fez a melhor marca mundial de sempre em 400m barreiras em Pista Coberta, com 48,78s. O anterior record já lhe pertencia mas era quase um segundo mais lento, em 49,73s de 2010! E logo aí eu soube e disse aos meus colegas de treino: “Félix Sánchez vai ser Campeão Olímpico!” E foi… Chegou a Londres com o site da própria IAAF a esquecê-lo (mais uma vez) nas previsões dos 400m barreiras. Na primeira eliminatória, Sánchez provou-me que estava lá para vencer, vencendo com uns finais 80m em passeio… Na meia-final, Sánchez “chocou” o mundo do atletismo e mandou uma mensagem fortíssima aos seus rivais, terminando em 47,76seg sem puxar até ao fim. Foi a melhor marca da temporada e a melhor do Super Sánchez desde Atenas 2004! As pessoas começaram a acreditar no que era improvável antes dos Jogos: a vitória do Dominicano.

À medida que os finalistas dos 400m barreiras entravam no Estádio Olímpico, aquela determinação de aço do Sánchez era notória mesmo com o capuz e os óculos escuros a taparem-lhe parte da cara. Aquela pessoa que tão valentemente tentou defender o seu título mundial em 2005 apesar de lesionado, ia para o Ouro e levá-la “abuela” escrita nos seus ténis para o ajudar durante os 400m.

Partindo na pista 7 (correspondendo à 6 na start list tal como na final de Atenas 2004), Sánchez tinha os seus maiores adversários atrás de si, tendo o papel de rato… Javier Culson, invicto em 2012, e Angelo Taylor partiram mais forte e aos 300m levavam uma ligeira vantagem. Mas Sánchez, experiente, soube controlar a ansiedade e, tal como em Atenas, não chegou aos 300m na primeira posição. Mas, os últimos 100m foram fenomenais, atacando a última barreira numa velocidade que mais ninguém consegue naquela derradeira barreira. Sánchez voou nos últimos metros para a glória, atingindo o seu segundo título olímpico com a curiosidade de o ter conseguido com o mesmo tempo de Atenas! Parece que estava tudo escrito no destino daquele magnífico atleta.

Acabou eufórico, gritando “Dominicanos!” para uns segundos mais tarde, puxar de uma foto que ia presa na parte de trás do seu dorsal, cair de joelhos e beijar a foto, visivelmente emocionado. Era uma foto de Sánchez com a sua falecida avó: a promessa tinha sido cumprida. Mais uma grande medalha, a maior medalha que poderia ter vencido… O ouro Olímpico! A redenção de uma carreira maravilhosa… A caminho da cerimónia de entrega da medalha, Sánchez pensou em todos os momentos de frustação e angústia que passou, das provações que saboreou e das amargas recomendações para abandonar a modalidade que ama… Agradeceu a Deus e pensou na sua avó e no quanto ela estaria orgulhosa do seu grande feito. A poucas semanas de completar 35 anos, o dominicano acabara de se tornar o atleta mais velho, de longe, a ganhar uma prova de velocidade nos Jogos Olímpicos!

Quando os medalhados estavam atrás do pódio, começou a chover e cada pinga da chuva foi entendida por Sánchez como lágrimas de felicidade da sua avó a cair do céu… Não se conseguiu conter e as lágrimas começaram a cair descontroladamente dos olhos do dominicano. O Estádio Olímpico não ficou indiferente e 70 mil pessoas aplaudiram-no de pé e pelo Mundo, muitos milhões emocionaram-se com a sua história. As lágrimas também me vieram aos olhos. Foi o momento Olímpico mais marcante que assisti…

Foi a noite em que o Super-Homem chorou…

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Comentarios (7)add feed
... : PC 28
Excelente!
Setembro 07, 2012
... : BMC
Muy, muy bom! Artigo simlesmente espetacular!
Setembro 10, 2012
... : Vanessa Carvalho
Que artigo sensacional, parabéns. Sem palavras
Setembro 10, 2012
Muito obrigado : Rafael Lopes
Obrigado pelos comentários.
Setembro 10, 2012
Grande texto smilies/wink.gif : Pedro Santos
Só agora tive oportunidade de ler este teu texto. Está realmente muito bom, a sério, muitos parabéns. Grande abraço Rafa smilies/wink.gif
Setembro 18, 2012
... : maria carvalho
Rafael nem sei bem como começar. Fantástico o sentimento que nutre por Félix Sanchez e a forma como o exprime. Ficámos muito muito felizes por ter conseguido falar com ele, que emoção deve ter sentido.
Mas deixe-me que lhe diga que ele também é um felizardo por ter o Rafael como fã, é notória a sua admiração por ele como atleta, mas também como homem de valores.
Adorei e obrigada em nome do Dionicio, por lembrar este excelente ser humano que também é atleta da Republica Dominicana.
Janeiro 12, 2013
... : Carla
Não foi preciso ver ao vivo para me virem as lágrimas aos olhos... só de ler bastou. Obrigada pelo enorme sentimento.
Fevereiro 09, 2013
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